Rondônia e seus “quadrados burros”; Roraima e suas “espinhas de peixe”

Manuela Cordeiro, PPGAS - UFRR

Iniciei a pesquisa sobre o deslocamento de famílias para Rondônia para compreender como elas vivenciavam a “sucessão geracional”, isto é, a transferência de poder de gestão da terra e patrimônio em assentamentos rurais criados há mais de três décadas. A ocupação massiva do estado foi fomentada pela política de colonização desenvolvida pelos militares durante a década de 1970. Essa organização foi responsável pelo “corte”, como era a chamada a divisão das terras pelos funcionários do INCRA, nas pranchetas estatais, o que não levava em conta os limites hídricos e de relevo dos terrenos assim delimitados. Tal distanciamento da realidade dificultou a vida dos migrantes, os chamados “pioneiros”, que buscavam o estado como alternativa à posse de terra. Rondônia é um dos estados que mais recebeu migrantes à época da colonização durante os governos militares no país (1964-1985), a partir da criação de distintos tipos de projetos de assentamento.

Sítio localizado na Linha C-75 – Travessão B-40 – Ariquemes
Foto: Manuela Cordeiro

A formação dos Projetos Integrados de Colonização (PIC) e Projetos de Assentamento Dirigidos (PAD) em Rondônia por vezes esbarrou também em problemáticas relacionadas à sobreposição de terras. Tal caso foi o que ocorreu com mais de cem lotes do PAD Burareiro, criado em 1974, e parte da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, homologada em 1971. Ou seja, a atribuição arbitrária de lotes de terra, muitas vezes não agricultáveis e que apresentavam dificuldades de acesso representavam um grave problema para as famílias migrantes. Além disso, a forma como a atribuição de terras foi feita resultou em situações de conflito com as populações que já viviam na região, no caso os indígenas.

Na cidade de Ariquemes, em Rondônia, o rapto de uma criança branca, filha de colonos, pelos Uru-Eu-Wau-Wau, agravaria a sensação de ameaça e a imagem de exotismo que os migrantes tinham dos indígenas. O tema foi retratado pelo cineasta Adrian Cowell no documentário “Na trilha dos Uru Eu Wau Wau” que demonstra a pressão exercida em nome dos ditames do progresso no estado que “abria” estradas e lotes sem respeitar as populações que viviam nessa área, respaldados pelo ideário do “vazio demográfico”. O “vazio demográfico” era uma construção social utilizada como justificativa para a colonização e uso das terras para fins agrícolas, “apagando” socialmente os seringueiros, seringalistas, garimpeiros, populações indígenas e demais populações que já ocupavam Rondônia, como também os vários estados que compõem a Amazônia brasileira.

Em Rondônia, a situação foi tal que os lotes “abertos” pela política estatal de colonização eram denominados, inclusive pelos próprios funcionários do estado, como “quadrados burros”. No caso de Roraima, a organização espacial da terra remetia a expressão “espinha de peixe”, que traduzia uma visão da terra a partir da prancheta da administração estatal, em uma organização fundiária feita a partir do traçado de uma estrada principal, o “tronco”, de onde partiam outras estradas, as chamadas “vicinais”, recortando os lotes para que fossem ocupados pelas famílias. O ciclo do desmatamento perdura, tanto em Rondônia quanto em Roraima, e os invasores derrubam a floresta em terra pública, vendem a madeira para se capitalizar e, posteriormente, plantam capim, usando a terra para a produção de gado bovino de corte ou a monocultura de soja, milho e arroz.

Foto: IBGE
Foto aérea, vista parcial da cidade de Boa Vista (RR) – 1978, IBGE Cidades

Trabalhos de campo e aproximações

O primeiro trabalho de campo que realizei em Rondônia foi em 2010, quando tive contato com alguns municípios do estado que foram criados a partir de projetos de assentamentos cuja divisão do lote era distinta, tanto em tamanho, quanto em relação às culturas incentivadas para o plantio.  Em 2012, selecionei o município de Ariquemes para a realização da pesquisa de doutorado pela possibilidade de pesquisar pelo menos duas realidades distintas, que foram pensadas de forma complementar, quanto à organização da terra. De um lado, havia o PAD Burareiro que era subdividido em terras de 250 hectares. De outro, havia o PAD Marechal Dutra, criado também na área do município, e quase concomitantemente, subdividido em terras de 100 hectares. O perfil de ocupação também era distinto – era necessário uma comprovação financeira para ocupar um lote no primeiro, pressupondo a necessidade de um capital inicial, ao passo que isso não era um pré-requisito para se ocupar um lote no PAD Marechal Dutra. Era possível visualizar, a partir dos relatos dos interlocutores, que se vislumbrava o posterior uso do trabalho assalariado daqueles que ocupavam o PAD Marechal Dutra para o outro assentamento. Tal processo foi descontinuado a partir da desvalorização da produção de cacau, no Burareiro, bem como a do café, no Marechal Dutra e o posterior investimento maciço na pecuária.

Durante o trabalho de campo, assisti a uma campanha publicitária veiculada na região: “Rondônia: estado natural da pecuária”, associando o agronegócio do gado de bovino de corte a uma qualidade inerente à paisagem do estado. Na imagem desta propaganda, vê-se um pasto extensivo com os animais e ao fundo algumas árvores, simbolizando a natureza. Rondônia, em 2019, ocupava o primeiro lugar na região norte em abate de gado bovino de corte, de acordo com os dados do Serviço de Inspeção Federal (S.I.F.).

Em Roraima, iniciei pesquisa sobre o deslocamento dos trabalhadores rurais em em 2015, quando tive a oportunidade de me mudar para a capital Boa Vista e ser professora da Universidade Federal de Roraima. Em vista de experiências prévias de pesquisa, observei que muitos produtores rurais, inclusive aqueles que ocuparam as terras em Rondônia, se deslocaram para o estado de Roraima ou do Amazonas, já que o preço das terras era mais barato.

A ocupação de Roraima pelos migrantes em busca de terra ocorre um pouco mais tarde do que em Rondônia, iniciado com a criação na porção sul do estado do Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Anauá, ainda em 1979. Desta feita, Roraima tem um histórico de ocupação mais recente por sua localização geográfica, dinâmica de ocupação e também pelo processo de atribuição de terras ao estado. Assim como o Amapá, Roraima era anteriormente território federal e apenas recentemente está sendo concluído o processo de regularização fundiária. O fato de aproximadamente 20% das terras ainda serem passíveis de regularização favorece o uso indiscriminado das mesmas para o agronegócio. No estado que representa a última fronteira agrícola do Brasil, tem crescido a produção de soja, de dendê e de gado bovino de corte. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), entre 2017 e 2018 aumentou em 25% a área destinada ao plantio de soja. Roraima é considerado um “oásis” na produção de soja convencional no país, visto que é possível produzir durante o período de entressafra nacional.

Podem ser apontadas virtudes na comparação entre os casos apresentados de Rondônia e Roraima. Existe uma rota de deslocamento dos trabalhadores rurais, a partir da década de 1970, em busca de terras e oportunidades de trabalho, não necessariamente agrícolas, que passa por Rondônia se estendendo até Roraima, considerada a “última fronteira agrícola do país”. Assim, as dinâmicas de uso da terra são replicadas, ao mesmo tempo em que reorganizadas localmente pelas famílias nos estados onde chegaram, também porque se defrontam com problemas em torno da regularização fundiária. As terras em Roraima podem ser vistas como uma oportunidade para os filhos que não possuíam lotes em Rondônia “criarem família” nesse outro estado e mesmo para aqueles que seguiam o “destino que fazia andar”, tal como relatam alguns dos primeiros moradores da vila de Entre Rios, em Caroebe, no sudeste de Roraima. Além disso, muitos trabalhadores rurais relatam que ocupavam as terras e posteriormente os lotes eram regularizados, ainda na década de 1980, processo distinto do que ocorreu em Rondônia.

Foto: IBGE
Sede da antiga Fazenda São Marcos, Roraima – 1954, IBGE Cidades

O caso de sobreposições de terras em Rondônia ilumina uma realidade comum diversos espaços da Amazônia brasileira: a coexistência de múltiplos regimes de usos de terras, ocupadas por diversos atores sociais, dentre os quais as populações indígenas, os assentados do INCRA e outros trabalhadores rurais, populações tradicionais, garimpeiros e grandes latifundiários de terra.  Desse modo, a regularização desses espaços ocorre, por vezes, em tempos e legislações diferenciadas – a sobreposição das terras da TI Uru Eu Wau Wau e parte do PAD Burareiro demonstra erros administrativos na gestão desse processo. A efetiva propriedade de terra continua a ser uma questão em ambos estados, seja pela iminência da regularização ou a necessidade de emancipação de assentamentos rurais. No entanto, mesmo onde o acesso ao documento definitivo da terra é mais facilitado como em Rondônia, existem recorrentes atividades de grilagem, dificultando o escoamento da produção dos agricultores familiares, bem como ameaçando a vida dos povos indígenas. Ademais, a expansão do agronegócio em ambos os estados exerce grande pressão nos limites das terras e, muitas vezes, resultam em invasões em assentamentos rurais e terras indígenas.

Como citar este texto [ISO690/2010]: CORDEIRO, M. Rondônia e seus “quadrados burros”; Roraima e suas “espinhas de peixe”. Desigualdades, violências e violações de direitos humanos na Amazônia brasileira, 2019 [visto em …]. Disponível em: http://amazoniaconflitos.com.br/pesquisas/rondonia-e-seus-quadrados-burros-roraima-e-suas-espinhas-de-peixe/

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