A partir de 2010, a cidade de Altamira, no sudoeste do Pará, recebeu um contingente populacional de cerca de 80 mil pessoas em função da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, o maior projeto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal. A cidade, que possuía cerca de 90 mil habitantes espalhados pelo maior município do Brasil em extensão territorial, enfrentou escassez de alimentos, déficit de moradia, explosão do número de acidentes de trânsito, violência contra a mulher e exploração sexual infantil. Em 2017, Altamira ganhou o triste título de cidade mais violenta do país, segundo o Atlas da Violência. Serviços públicos já insuficientes ou inexistentes, como o saneamento básico e o transporte, alcançaram um ponto crítico e foram objeto de diferentes ações do Ministério Público Federal, Defensoria Pública e de numerosas denúncias de movimentos sociais da região. Atualmente, a obra é considerada concluída, com todas as 18 turbinas podendo operar e possui o título de “maior usina hidroelétrica 100% brasileira“.
Embora Belo Monte seja um capítulo importante da história de Altamira, a cidade é marcada por outros “ciclos” de desenvolvimento, como a extração de especiarias e peles de animais no século XVIII, a borracha no século XIX, e o projeto de construção da maior estrada do mundo, que levaria de um oceano a outro, a Rodovia Transamazônica, na década de 70 do século XX. De todas essas iniciativas restaram inscrições na história, na paisagem e na presença ou omissão de setores e serviços públicos. Em vista da atuação da Igreja Católica progressista na região, foi estruturada a mobilização social em Altamira e região ainda nos anos 70, sendo hoje uma das mais expressivas do país. Entre as ações que alcançaram maior repercussão estão os protestos pela conclusão do asfaltamento da Rodovia Transamazônica, a luta contra a implantação da Usina Hidroelétrica de Kararaô (contexto da famosa fotografia da índia Tuíra enfrentando um funcionário da Eletrobrás com seu facão), e os conflitos relacionados à implantação de Belo Monte, a partir de 2009.
O bairro Jardim Independente 1 está localizado a cerca de 2km do centro da cidade de Altamira. Uma parte do bairro está localizada sobre uma região alagada, em que casas de madeira foram construídas. Moradores do bairro informam que até o anúncio da construção de Belo Monte viviam cerca de 20 famílias na parte alagada do bairro. A partir de 2017, o que era apenas uma parte (desassistida) do bairro, conhecida como “Lagoa”, passou a ser referida com o nome do bairro, indistintamente, pela imprensa local e nacional. Inverteram-se as ordens de antiguidade e as referências das nomeações locais. Reportagens na grande mídia revelaram a situação dos moradores, convivendo com a subida das águas de maneira inédita, lidando com a proliferação de mosquitos e com o acúmulo de lixo.
Ações do Ministério Público Federal determinaram que a Norte Energia, empresa responsável pela obra, “remanejasse” 496 famílias. Organizados a partir da Associação de Moradores e apoiados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), além de outras lideranças e movimentos sociais, os moradores estavam de acordo com a remoção. A reivindicação era por habitação salubre em terra firme. Em maio de 2018, estive no bairro Jardim Independente I acompanhada por Raimunda Lima, interlocutora de pesquisa e amiga há mais de dez anos, integrante de diversos movimentos sociais da região e, atualmente, à frente do Movimento de Mulheres. Nesse dia, Raimunda e eu estivemos no bairro para uma reunião convocada pelo MAB que discutiria, justamente, as perspectivas de realocação dos moradores. Por sugestão dela, chegamos mais cedo e percorremos a parte alagada do bairro, onde ela buscou por uma conhecida, sem sucesso. Em nossa caminhada pelo bairro, pelas passarelas de tábua, não cruzamos com nenhuma pessoa. Algumas mulheres e crianças pequenas eram vistas dentro de suas casas, assistindo TV ou realizando afazeres domésticos. Experienciamos a atmosfera de um bairro trabalhador, em que por volta das 15h as pessoas encontram-se fora de casa. No entanto, é certo que algumas casas já estavam vazias, totalmente ou parcialmente desmontadas, indicando que algumas pessoas já haviam saído dali rumo a outras cidades, outros bairros, após o início da desmobilização da mão-de-obra contratada para atuar na construção de Belo Monte.
Interrompendo o silêncio do bairro e conferindo movimento às casas e às passarelas, alguns meninos jogavam bola dentro de uma moradia vazia. O que foi casa passou a ser quadra de esportes, no bairro que não conta com estruturas de lazer, não é servido por redes de água e esgoto.
Na parte alagada do Jardim Independente I, a madeira é material predominante não só por ser mais acessível do que itens de alvenaria como cimento e tijolo, como também viabiliza a construção mais rápida. Além disso, as tábuas de madeira são material mais facilmente reaproveitável, podendo até mesmo serem compradas de segunda mão. É frequente, em outras partes da cidade, encontrar casas construídas em alvenaria, mas com partes (cozinha, varanda, quartinho) adicionais construídas em madeira. Durante o deslocamento de várias famílias das beiras dos rios e igarapés, era comum ver nas frentes das casas em processo de desocupação pilhas e pilhas de madeira que, mais tarde, serviriam para transformar em moradia as casas de 63m2 localizadas em um dos Reassentamentos Urbanos Coletivos. No Jardim Independente I, em maio de 2018, a madeira preenche a visão: é outdoor, é parede, muro, ponte, rua, janela, piso, grade, varanda.
Em julho de 2019, após quatro anos de ações de movimentos sociais e de decisões de órgãos públicos que apontaram a responsabilidade da empresa Norte Energia na piora das condições de vida dos moradores da parte alagada do Jardim Independente I, as 496 famílias consideradas atingidas foram reassentadas. Atualmente, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) luta para que as famílias que vivem no entorno da parte que foi desocupada sejam também assistidas, o que vem sendo objeto de forte resistência da empresa.
Como citar este texto [ISO690/2010]: LACERDA, P. Jardim Independente I [online]. Desigualdades, violências e violações de direitos humanos na Amazônia brasileira, 2019 [visto em …]. Disponível em: http://amazoniaconflitos.com.br/pesquisas/jardim-independente-i/
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